Quarta-feira,
19/6/2013
Se dependesse das autoridades, protesto seria sempre ordeiro. Uma turminha bem
comportada, carregando cartazes bem-feitinhos, dando voltas sem fim em algum
lugar que não atrapalhe o trânsito ― num Sambódromo, ou quem sabe em um
autódromo. Para participar, seria preciso se inscrever, apresentar RG, CPF,
serviço militar quitado, Imposto de Renda, atestado de bom comportamento, e não
ter antecedentes criminais. Vamos ser bem claros: protesto pacífico não serve
pra muita coisa. A polícia não bate. A imprensa não dá espaço. Os governantes
não dão bola. Protesto não é pra ser pacífico. Protesto é pra incomodar.
Protesto é para questionar a ordem. Nada questiona tão bem quanto um soco, um
incêndio, uma pedrada na vidraça.
Em protestos como vêm acontecendo no Brasil, uma minoria bem ínfima é que está
quebrando, e agora saqueando. É essa minoria que ocupa muito espaço na
cobertura televisiva. Por uma ótima razão: rende boa TV. Televisão é imagem, e
imagem de gente brigando, correndo, botando fogo e enfrentando a polícia é mais
emocionante que imagem de gente caminhando calmamente (por isso é que tem tanto
seriado policial, e nenhum sobre gente que gosta de caminhar). E essa minoria
aumenta muito o poder de fogo do conjunto dos manifestantes ― queiram os
pacifistas do movimento ou não.
Vamos separar, por um minuto, as depredações dos saques. Vimos grupos, e não
tão ínfimos assim, que se dedicaram a apedrejar, pichar, quebrar as frentes da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Palácio dos Bandeirantes e a
prefeitura em São Paulo,
e outros prédios públicos. São alvos absolutamente legítimos. A massa dos
manifestantes, e praticamente todo mundo que acompanha o movimento, identifica
governadores, prefeitos e a classe política como parte do problema, não da
solução. São, nesse sentido, o inimigo. Estão sempre protegidos pela polícia,
porque sabem que são alvos, e que merecem ser alvos. No limite, o governo sai
matando de um lado, e os revoltosos saem matando do outro ― vide Síria.
Vamos seguir o mesmo raciocínio. Vimos outros alvos ontem, não-públicos.
Quebraram agências de bancos. Os bancos são amigos ou inimigos da população?
Quebraram McDonald's. De que lado você colocaria a rede de fast-food?
Não deixaram Caco Barcellos trabalhar, botaram fogo em uma carro da reportagem
da TV Record. De que lado você põe a mídia, a seu lado ou contra você? A
decisão é de cada um, e de cada um que está nos protestos. Uns são muito
radicais, outros muito moderados. Quem decidir ir pro pau, vai sabendo que pode
levar porrada e talvez, ir para a cadeia.
Nos últimos dias, ficou mais complicado decidir a quem você se opõe. Agora toda
a imprensa está simpática (se bem que cobrindo muitíssimo mal, em geral), a PM
está bem contida, os políticos aplaudem, tá todo mundo vendo "beleza"
nos protestos, como disse o governador do Rio. Da boca pra fora, claro ―
ninguém se mexeu um milímetro para atender as reivindicações dos manifestantes,
pelo menos nas grandes cidades. Mas o bloco do "a favor" está
crescendo, inchando até. Virou obrigação aplaudir. Todos os famosos apóiam, e
se os famosos apóiam deve ser boa coisa, né?
Mas todo esse a favor para quando começa o pau. Todos aplaudem os protestos, e
todos são unânimes em satanizar os baderneiros, os infiltrados, os vândalos. E
mais ainda os que roubam. Saquear lojas atravessa uma fronteira muito
importante. Na linha acima, é fácil entender porque alguns manifestantes muito
radicalizados veem esses grandes magazines como templos do consumo, símbolos do
capitalismo, e portanto alvos válidos. Mas na hora que você sai correndo com
uma TV, um celular ou um microondas, que vai levar pra sua casa e usufruir,
passa a ser visto como um ladrão comum.
Em um contexto de desobediência civil, é estratégia sólida dar um chega-pra-lá
nas regras cotidianas do consumo, e dar uma banana para a lei. Na época da
ditadura militar, guerrilheiros roubavam bancos e ricaços e, com o dinheiro,
financiavam ações contra o regime. Não era roubo, era "expropriação",
diziam. A presidente da república, Dilma Rousseff, colaborou em ações do
gênero. Vi um senador na televisão dizendo que manifestações violentas são
incompatíveis com o regime democrático. Os militares também garantiam que
vivíamos em uma democracia nos anos 70. Democracia não é o que senador diz, é o
que o povo sente.
(...)O Brasil não vive um cenário de transformação radical. Mas nosso País é
muito violento, o tempo todo, e particularmente com os mais pobres. Violência
do crime, e violência do Estado, que nos leva o dinheiro e nos dá tão pouco em troca. Não se trata de
defender quem depreda e saqueia. Se trata de ter consciência de que nossa paz é
diariamente quebrada, que muitas empresas depredam o País cotidianamente, e que
o poder público não nos protege. Donde que é ser muito ingênuo achar que todo
protesto vai ser sempre pacífico e polido. É fácil pra classe média alta
boazinha, que vive em condomínio, paga seguro saúde e escola, põe insulfilm
no carro e depende muito menos do Estado, cobrar que todo mundo se comporte...
É preciso, também, descobrir outras maneiras de protestar. Não podemos ficar
entre o quebra-quebra e esses passeios sem fim pela cidade, gritando palavras
de ordem e "violência não". Desobediência civil ― e criativa ― é um
dos melhores caminhos. Ainda mais se beneficiar diretamente a população que
hoje não está nas ruas.
(...)Olha, eu sou o cara mais pacífico do mundo. Mas vamos botar a mão na
consciência. O País atravessa uma turbulência que não tem precedentes na
campanha pelo impeachment de Collor, ou pelas Diretas. É outro Brasil,
outro mundo, são outros descontentamentos e anseios, são outros governantes e
manifestantes. Quem protesta não enxerga hoje na tal sociedade civil quem o
represente. Nem partidos, nem instituições. Os políticos que marcharam pelas
diretas, e contra Collor, hoje estão no poder, e são amiguinhos dos herdeiros
da ditadura, e do próprio Collor. É de se estranhar que tenha gente que quer
quebrar tudo?
19/6/2013 às 12h44
(*) Texto transcrito na íntegra.
Fonte: Digestivo Cultural – acessado hoje dia 20/06/2013, às 11h 30m de
MS, através deste link: